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No Brasil não há só falta de planejamento, mas também legislação ambiental descumprida e mal elaborada (Foto: Anselmo Costa/AFP)
Será preciso aplicar novas fórmulas de controle social para que a reconstrução da devastação climática não sofra dos mesmos males que as provocaram
por Carlos Bocuhy
Um levantamento, no início de maio, mostrou que Porto Alegre e mais 14 capitais do País não possuem plano de prevenção às mudanças climáticas. Esse é sinal claro da falta de preparo da sociedade com os eventos climáticos extremos, cada vez mais presentes em todo o mundo.
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A falta de prevenção é uma armadilha e o ordenamento territorial superficial também. No Brasil não há só falta de planejamento, mas também legislação ambiental descumprida e mal elaborada, muitas vezes descaracterizada por interesses econômicos.
Os zoneamentos ambientais, planos diretores e o licenciamento ambiental deveriam estar devidamente encaminhados, de forma a contribuir para o enfrentamento do cenário da emergência climática.
Por que isso não ocorre? Há falta de informação? De aporte científico? Quais as causas que impedem aos processos decisórios de gerar boas políticas públicas protetivas?
Segundo os pesquisadores e economistas Tim Besleyyand e Torsten Perssonz, professores nas universidades de Londres e de Estocolmo, respectivamente, os governos são pressionados em muitos domínios e a política climática não é exceção. Uma vasta literatura aponta como a atividade lobística favorece atividades empresariais. Ao pagar contribuições de campanha para políticos, estes passam, após eleitos, a prover lucros para as empresas com o sacrifício de politicas públicas.
No Brasil verifica-se em larga escala práticas especulativas e antiambientais, com atração do voto desinformado e a facilidade para atrair grupos de interesse. A ligação imatura dessa prática política tem se associado aos resquícios da gênese do extrativismo colonial brasileiro, apenas focado em transformar natureza em commodities agropecuárias para exportação.
A falta de avanços conceituais para o agronegócio atrasado, mas economicamente poderoso, faz com que o business a usual, os negócios como sempre foram, continuem a exercer forte pressão sobre os destinos políticos e territoriais do país.
O Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam) tem acompanhado por mais de duas décadas processos decisórios em conselhos ambientais, decisões discricionárias de governos e práticas legislativas. Nota-se dinâmicas que invariavelmente interferem em decisões voltadas à sustentabilidade.
A pressão econômica do agronegócio ambicioso penetra nos espaços de influência governamental e legislativa. Permeia, influencia, financia e se faz representar diretamente em funções do Executivo e do Legislativo. Assim, provoca abrandamento de mecanismos protetivos; oblitera a visão científica e especializada buscando “simplificar”, de forma negativa, as avaliações ambientais; e manipula, com maioria governamental e influência econômica, deliberações de conselhos ambientais, provocando assim decisões não-sustentáveis.
O gráfico abaixo ilustra essa realidade:
Sistema de desmantelamento das decisões pró-sustentabilidade – PROAM (2023)
Por vezes, há convencimento dos menos informados com uso de pesquisadores, acadêmicos e penas de aluguel, disponíveis para desenhar engodos úteis a partir de dados não comprováveis. Especialistas científicos afirmam, em matéria da Deutsch Welle, que "há muitas evidências e provas sobre manipulação de dados e informações para dar sustentação à elaboração de propostas e projetos de leis com objetivo de afrouxar e dilapidar a legislação ambiental em prol do agronegócio".
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Associações do setor do agronegócio espalharam recentemente o mito de que o aquecimento global não existe, elegendo atores pinçados da academia “que foram alçados à categoria de especialistas por congressistas da bancada ruralista no Congresso”.
O Código Ambiental do Rio Grande do Sul, sob a gestão de Eduardo Leite, sofreu alteração em 480 dispositivos ambientais para prover facilidades para o uso e ocupação do território riograndense. Apesar da Constituição Federal determinar a plena participação social em matéria ambiental, o Código Ambiental do RS, construído com debates técnicos durante nove anos, foi alterado em tempo recorde de 75 dias, sem audiências públicas adequadas, sem consultas à área científica e sem ouvir a Comissão de Saúde e Meio Ambiente da Assembleia Legislativa.
Um dos pontos mais preocupantes foi o Licenciamento Ambiental. O Licenciamento Ambiental por Compromisso (LAC), ou autolicenciamento, foi aprovado pelo Conselho Estadual do Meio Ambiente do Rio Grande do Sul (Consema/RS) apenas com a resistência minoritária das ONGs ambientais e de ação de inconstitucionaliade proposta pelo Ministério Público.
O desmantelamento normativo no RS não parou por aí. Em abril de 2024 Eduardo Leite sancionou lei que sacrifica áreas naturais inundáveis para a construção de barragens em área de preservação ambiental (APP) a pedido de ruralistas e sob duras críticas de ambientalistas.
A situação de vulnerabilidade climática do RS e do Brasil decorre de uma série de fatores climáticos que causam impactos extremos, em contexto de continuado descaso político. Como consequência, dentre 184 países, o Brasil ocupa o 86º lugar em capacidade de resiliência climática, segundo o índice ND-GAIN, elaborado pela Universidade de Notre Dame, nos Estados Unidos. O ranking leva em consideração condições de sobrevivência que podem ser afetadas por eventos extremos.
No Congresso Nacional 30% das verbas para obras e investimentos estão na mão dos congressistas que controlam o poder em ministérios, barganhados com o governo federal, em contrapartida para apoiar projetos de interesse do governo. Ironicamente essa prática é reconhecida como obtenção de “governabilidade”, enquanto na verdade é o velho toma-lá-dá-cá que privilegia aliados politicos e seus redutos eleitorais – em especial, a chamada bancada ruralista, que congrega 324 dos 513 deputados federais e 50 dos 81 senadores.
A pasta da Agricultura é ocupado pelo ex-diretor da Associação dos Produtores de Soja e Milho de Mato Grosso (Aprosoja-MT), ministro Carlos Fávaro. Em matéria investigativa, o site Reporter Brasil afirma que, nos bastidores de Brasília, é sabido que o ministro “tem aval para seguir com a pauta ruralista, com alguma discrição”.
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Essa constatação de fragmentação institucional encerra as possibilidades de ação transformadora intersetorial proposta pela ministra de Meio Ambiente Marina Silva, no início de seu mandato. É pior ainda pois se soma à atuação de Alexandre Silveira, ministro de Minas e Energia, que tem afirmado que o Brasil irá “explorar petróleo até ter nível de país desenvolvido”.
Considerando todas essas dificuldades institucionais, com os poderes executivo e legislativo minados por interesses contrários à sustentabilidade ambiental e à adaptação climática, estaria o Brasil destinado a expor sua população a riscos ambientais cada vez maiores, sem possibilidades de uma firme governança rumo à sustentabilidade?
Nada menos que 25 projetos de lei e três emendas constitucionais tramitam no Congresso Nacional com o objetivo de desmantelar o regramento ambiental brasileiro. Um dos mais preocupantes é o ataque contra diretrizes basilares do licenciamento ambiental, que já foi duramente sucateado no Rio Grande do Sul.
Na ausência de planejamento territorial, é o licenciamento ambiental que socorre a sociedade, garantindo aspectos de participação social em matéria ambiental. É o que nos resta de espaço democrático em meio a este latifúndio.
O PL 2159/2021, que pretende novo regramento para o licenciamento ambiental brasileiro, foi aprovado sob forte poder lobístico na Câmara dos Deputados e tramita agora no Senado Federal. Seu desmantelamento normativo pretende:
1 - Permitir o autolicenciamento, por meio da Licença por Adesão e Compromisso (LAC), que retira transparência, garantia de participação social e requisitos de adaptação climática.
2 – Permitir Licença de Operação Corretiva (LOC), que representa anistia e estimula a criminalidade, retirando transparência e garantia de participação social.
3 – Permitir renovação de licenças sem apreciação pelo órgão ambiental, sem possibilidade de atualização tecnológica e adequações, inclusive de benefício climático.
4 – Dispensar avaliação para “baixo impacto”, permitindo “ampliações de atividades já instaladas”, ou renovações de licenciamento, sem averiguar impactos sinérgicos, de mitigação e adaptação climática, sem transparência e garantia de participação social.
5 – Dispensar do licenciamento o agronegócio e a pecuária extensiva, atividades responsáveis pela devastação do bioma da Amazônia e do Cerrado, que afetam substancialmente o perfil brasileiro no cenário global de emissões de Gases Efeito Estufa (GEE).
6 – Excluir obrigatoriedade de parecer vinculante atores especializados como o Instituto Chico Mendes (ICMBio), Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e Fundação Nacional do índio (Funai), entre outros.
7 – Institui a benevolência de prazo para a concessão de licença prévia em apenas dez meses, tarefa impossível para empreendimentos até mesmo de média complexidade.
8 – Limita a responsabilidade civil de instituições financeiras por danos ambientais causados pelos empreendimentos, criando um bypass para alforriar os que financiam a degradação ambiental.
Por tudo isso, a proposta fere compromissos preexistentes da democracia participativa para a proteção do meio ambiente, sacralizados em inúmeros acordos, protocolos e tratados internacionais, dos quais o Brasil é signatário, como o Princípio 10 da Declaração do Rio, que expressa “o melhor modo de tratar as questões ambientais é com a participação de todos os cidadãos interessados, em vários níveis.
O Congresso Nacional está exercendo papel nocivo para a governança ambiental e climática do Brasil. A composição majoritária com características lobísticas, especialmente ligadas ao agronegócio, está colocando em risco as conquistas democráticas em matéria ambiental, em que pese a proibição legal e ética que incide sobre parlamentares de “perceber, a qualquer título, em proveito próprio ou de outrem, no exercício da atividade parlamentar, vantagens indevidas".
Nesse intenso conflito de interesses que permeia o legislativo nacional, em detrimento dos bens indisponíveis da sociedade representados no patrimônio ambiental público, outro projeto de lei foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados: o PL 364/2019, que retira a proteção de todos os campos nativos e outras formações não florestais. O autor da proposta está entre deputados da bancada ruralista acusados de receber pagamentos da empresa JBS, conforme depoimento dado à Polícia Federal por Ricardo Saud, um diretor da própria JBS.
Só a transparência e a intensa pressão dos elementos democráticos de controle social, em sua capacidade de demonstrar a existência de conflitos de interesse em prejuízo da coisa pública, poderá colocar nos trilhos a probidade legislativa nacional para garantir integridade ao arcabouço ambiental legal, de forma a permitir processos adequados de adaptação climática. |
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