|
Estratégias discretas, mas eficazes, ameaçam a sustentabilidade e a transparência das políticas ambientais globais
- por Carlos Bocuhy
- Fahrenheit 451, clássico da literatura de Ray Bradbury, é um mergulho nas possíveis distopias da censura extrema. Sua ficção retrata o receio das culturas humanas de que, em função de regimes totalitários ideológicos, se destruam ideias e dados que possam representar fonte de questionamento ao establishment.
Bradbury escreveu sua obra em reação ao macartismo. Estava preocupado não com simbólicos livros incendiados, mas com novos meios trazidos pela tecnologia, como a televisão, a web de uma via dos anos 60.
O recente apagão cibernético sofrido pelos sistemas globais demonstra fragilidade e dependência de fontes únicas, sem elementos recursais, onde falhas representam efeitos avassaladores para sistemas globalizados.
Se Bradbury tivesse presenciado fake news se alastrando pela web, perceberia que sua ficção estaria mais próxima da realidade no limiar do século XXI, no backlash (retrocesso) que resiste aos avanços ambientais, onde a queima de ideias e dados se vê substituída pela contrainformação, estratégia amplamente utilizada em estado de guerra, incluso a fria.
Em 2018, diante dos discursos pré-eleitorais incendiários de Donald Trump, houve intensa mobilização de setores científicos reunidos na biblioteca da Universidade da Pensilvânia, preocupados com a proteção de dados, como por exemplo o histórico registro da National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA) sobre o derretimento do gelo nas calotas polares decorrente das mudanças climáticas e dados sobre fábricas e usinas de energias que mais emitem gases efeito-estufa.
O temor era de apagão de dados, provocado por possíveis excessos do poder estatal, que poderia arbitrar em manter ou não arquivos em sites públicos, como bancos de dados de instituições governamentais.
Um artifício já utilizado tem sido a vacância de dados com o interregno sem fim das supostas atualizações de plataformas digitais, ou a decretação de sigilo impedindo visualizações externas ao sistema, o que é absolutamente questionável. Isso ainda ocorre com processos do Ibama.
Há realmente riscos no cenário norte-americano? Seria possível silenciosamente desmantelar dados e informações disponíveis sobre poluição e mudanças climáticas, que estejam servindo de subsídios para refrear interesses econômicos expansionistas?
O perigo é real. Mas não só para perda de dados. Fato similar foi retratado em matéria recente da CartaCapital, com relação ao extravio de arquivos do Ministério do Meio Ambiente entre 2019 e 2022, enquanto o site da pasta migrava de endereço. Nem tudo foi recuperado.
Um governo ideológico antiambiental consegue transbordar seu poder discricionário; substituir dirigentes técnicos, em cargo de chefia, por acólitos e, em curto espaço de tempo, desmantelar a normativa infralegal por meio de novos decretos, resoluções, portarias etc. Essa história o Brasil conhece de passado recente, de situações protagonizadas durante a gestão de Jair Bolsonaro.
Interessante é perceber que nem todo o desmantelamento normativo foi recuperado pelo atual governo, prova que as influências econômicas se perpetuam com facilidade nas esferas do poder.
O extrapolamento do poder discricionário frequentemente utiliza a roupagem da modernização, medidas que se apresentam difusas e diante dos quais muitas vezes patina o próprio poder judiciário.
Assim, tem sido possível manter um estado de coisas inconstitucional, como já afirmou a ministra Carmen Lúcia do STF, por longos períodos, até que a devastação comece a se materializar. A ministra apontou diminuição orçamentária para o meio ambiente de 2023 para 2024 e que o Brasil ainda está com índices aquém dos compromissos internacionais firmados. “Estou convencida de que isso [refere-se à proteção do meio ambiente] não é política de governo, é política de Estado. Acho que o Brasil não pode ficar a cada governo tendo um soluço antidemocrático ambiental”, afirmou.
Os atos do Conama caminharam, na gestão Bolsonaro, para a “revisão” da proteção das restingas, simplesmente eliminando-a, para alegria da especulação imobiliária. Também no sucateamento e suspensão dos mecanismos operacionais do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), retirando de campo fiscalização e relativizando meios coercitivos de destruição de maquinários utilizados para a prática de crimes ambientais, assim como a perda de mecanismos econômicos para penalização, como multas etc., que fizeram a festa de desmatadores, grileiros e do garimpo ilegal.
Mas é preciso atenção para a mudança dos métodos. Não se necessita da alta temperatura para incinerar, como os 233ºC equivalentes à tabela Fahrenheit 451, calor suficiente para fulminar papel. Basta colocar as instituições ambientais em banho-maria.
Com banho-maria é possível, por meio de canetadas lastreadas em poder discricionário, neutralizar mecanismos de controle social, como conselhos que exercem papel regulamentador e conferem transparência aos atos estatais.
Conselhos podem ser mantidos por longos períodos mergulhados em percepção ilusória de participação social, apesar do sofrível e ineficaz estado minoritário da sociedade civil, onde nada acontece que não seja de interesse governamental.
Nessas circunstâncias, setores preocupados com a boa administração ambiental também precisam mapear manipulações como competências setoriais deslocadas para áreas de gestão pouco afins como, por exemplo, a Agência Nacional de Águas (ANA) sediada no Ministério de Integração Nacional e do Desenvolvimento Regional.
É preciso especial atenção aos setores mais estratégicos da economia. Se há necessidade de controle social voltado à sustentabilidade, é imprescindível rastrear e analisar frequentemente os caminhos da economia, os fluxos econômicos do PIB.
Nessas áreas o banho-maria ambiental é customizado para acalmar os ambientalmente despreparados. A velha política do business as usual há muito atingiu meios de sobrevivência em capacidade de engodo. Retorna ano a ano cada vez mais experiente, tornando possível “camaleonar” interesses de extrema direita em roupagem de esquerda, ou selvageria econômica em transições ilusórias para lugar nenhum.
Por exemplo, é possível observar os avanços anunciados para a melhoria da qualidade do ar no Brasil, apesar das populações continuarem em estado de insalubridade. Basta colocar o foco no resultado, sinalizando com alarde a meta segura e desejável que pretende ser atingida na metade do século.
Faz de conta como este foi detectado pela ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge: “Estão em jogo dois bens essenciais à vida: a saúde e o meio ambiente. Com efeito, qualquer regramento que não garanta a extensiva e eficaz proteção a esses direitos não estará sob a guarda da nossa ordem constitucional”.
Os riscos de climate washing continuam presentes nesses tempos de mudança climática. A formulação incompleta das práticas ESG, a falta de cuidados para eficácia dos mecanismos Redd (Redução de Emissões provenientes de Desmatamento e Degradação Florestal), a ausência de controle e participação social no planejamento governamental, a falta de conteúdo ambiental/climático para planos diretores municipais, a descentralização de forma despreparada e irresponsável do licenciamento ambiental estão entre tantas outras áreas que devem evitar as águas mornas do banho-maria ambiental.
É preciso, especialmente, observar os planos de transição energética anunciados com alarde, porém sem metas nem prazos, lastreados em recursos provenientes de contraditória intensificação da extração petrolífera. O pior dessa situação 'faz de conta' é que ocorre em estado de emergência climática, o que desnuda o banho-maria ambiental e demonstra o que realmente ele é: estado fantasioso que simula ações para acobertar e manter interesses de sempre, com meios ilusórios, em absoluta ineficácia da governança ambiental e climática.
Se, por um infortúnio do destino, Donald Trump voltar à Casa Branca, ele trará na bagagem melhor compreensão das vulnerabilidades do sistema, acólitos antiambientais e facilitadores mais dispostos para implementar agenda mais focada na destruição dos requisitos ambientais.
Não podemos nos iludir. O crescente banho-maria ambiental que vem se instalando no Brasil também poderá corroer, em médio prazo e em igual proporção, a área ambiental brasileira. |
|