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Carlos Bocuhy
28 de dezembro de 2023 A transformação da matriz planetária para energia limpa e a manutenção da temperatura máxima em 1,5 ºC, limite de segurança estabelecido no Acordo de Paris, demandam ações urgentes de redução das emissões globais em 43% até 2030, com base nas emissões de 2019.
O Relatório sobre a Lacuna de Produção 20231 demonstra que os governos planejam 110% mais produção de combustíveis fósseis do que o volume que levaria a 1,5 ºC de aquecimento – e 69% mais do que seria compatível com a meta de 2 ºC.
Uma das razões é a expansão do setor petrolífero, o maior responsável pelo aquecimento global. Os dados da Global Oil and Gas Exit List demonstram que 96% das setecentas empresas petrolíferas continuam explorando e desenvolvendo novos campos de petróleo. Segundo Nils Bartsch, chefe da pesquisa, “a magnitude dos planos de expansão do setor é realmente assustadora. Para manter 1,5 °C vivo, um declínio rápido e gerenciado na produção de petróleo e gás é vital. Em vez disso, as empresas de petróleo e gás estão construindo uma ponte para o caos climático”.
As sete maiores empresas de exploração são: China National Petroleum Corporation – CNPC (US$ 5,9 bilhões), China National Offshore Oil Corporation – CNOOC (US$ 3,2 bilhões), Saudi Aramco (US$ 2,8 bilhões), Petróleos Mexicanos – Pemex (US$ 2,6 bilhões), Sinopec Group (US$ 2,4 bilhões), Pioneer Natural Resources (US$ 2,1 bilhões) e Shell (US$ 2 bilhões).
O Brasil é o oitavo maior produtor e exportador de petróleo no ranking global de 2022 e acaba de levar a leilão 193 blocos exploratórios, muitos em áreas ambientalmente sensíveis. A Organização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep) e seus associados na categoria Opep+ (leia-se Opep Plus) detêm, em suas reservas, cerca de 1,24 trilhão de barris. O Brasil vem se aproximando do cartel do petróleo. Participou em julho, em Viena, do 8º Seminário Internacional da Opep.
Recentemente, foi convidado a integrar a Opep+ e aceitou, sob protestos de cientistas e ambientalistas. Como consequência, recebeu, durante a COP 28, o prêmio Fóssil do Dia, outorgado pela Climate Action Network, que agrega cerca de 1.300 entidades não governamentais.
Depois de décadas de obstrução ao termo “combustíveis fósseis”, este entrou no documento final da COP 28, em que pesem milhares de menções a ele nos documentos científicos do Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC). Pode parecer absurdo que essa obviedade tenha contentado a diplomacia internacional. Isso demonstra a histórica incapacidade da humanidade de, a passos de tartaruga, responder à velocidade feroz do desafio climático.
Não será fácil romper as defesas do leviatã fóssil. As Nações Unidas têm buscado o multilateralismo colaborativo, que continua a escorregar diante dos interesses nacionais econômicos em busca de hegemonia política, no meio global de instabilidade geopolítica semeada por guerras e conduzido por governos com baixa performance de governança ambiental.
A instabilidade cede espaço aos lobbies de combustíveis fósseis. Países com PIBs recheados de carbono e corporações fósseis seguem solapando os direitos fundamentais da sociedade humana, de espécies vivas e de ecossistemas associados.
A COP 28, realizada neste fim de ano nos Emirados Árabes, um dos Estados centrais da Opep, revelou explícito conflito de interesses ao ser coordenada pelo sultão Ahmed al-Jaber, presidente da ADNOC, empresa estatal de petróleo. A captura da COP pelo setor petrolífero foi comparada à presença da raposa no galinheiro, o mesmo que uma conferência antidesarmamento coordenada por fabricantes de mísseis.
Maquiavel se reciclou em Dubai. Há séculos, o conselheiro da corte de Florença operou o corte epistêmico que retirou a ética do núcleo da ciência política, conferindo ao subterfúgio da mentira um estatuto especial, na medida em que o príncipe tinha o direito de utilizar qualquer meio para alcançar seus fins. Foi assim que em Dubai o lobby dos fósseis extrapolou e abusou da inteligência da sociedade.
A sociedade civil independente e alguns veículos de comunicação mais corajosos e fora da lista de pagamento dos fósseis apontaram que os argumentos de defesa foram rasos, como “envolver o setor de petróleo nas discussões climáticas”, em que pese estarem envolvidos até a medula por serem os maiores responsáveis pelo problema.
A massa dos interesses econômicos se associa com facilidade aos interesses governamentais, amalgamados no imediatismo do lucro ambicioso e crescimento do PIB, que tem sido a medida de sucesso de curto prazo para governos de plantão, sufocando políticas de Estado voltadas ao interesse público.
A transformação é urgente. A sociedade humana não pode prescindir de cidadãos que compreendam o que está acontecendo com o clima planetário e apliquem esse conhecimento em seu dia a dia, em sua vida, em engajamentos comunitários e como elemento de controle social sobre as ações e os embustes corporativos e governamentais – isso se seu país for democrático.
O controle social não é viável para as populações da maioria dos países produtores de petróleo, onde vozes dissidentes são caladas com facilidade. Estamos seguindo para a terceira COP realizada em países com insuficiência democrática. Depois do Egito (COP 27) e dos Emirados Árabes Unidos (COP 28), a COP 29 segue para o Azerbaijão, onde o petróleo responde por um terço do PIB.
O histórico embuste do lobby do petróleo
O lobby do petróleo tem uma longa história. A segunda conferência climática global aconteceu em 1990, em Genebra, e “foi sabotada pelos Estados Unidos e pelos lobbies do petróleo”, afirma a Organização Internacional de Energia Sustentável. Na ocasião, o lobby boicotou a Carta Global de Energia, que visava à proteção da vida, da saúde, do clima e da biosfera das emissões dos combustíveis fósseis. Segundo o Granthan Institute, tratava-se de “esforços das empresas e de seus agentes para influenciar, direta ou indiretamente, a tomada de decisões relacionadas às mudanças climáticas por atores políticos ou burocráticos”.2
Uma decisão acertada naquele período poderia ter colocado o mundo na rota das alternativas limpas de energia, poupando milhões de vidas e um altíssimo custo de reparação de danos ambientais. A práxis do lobby dos fósseis busca garantir preços de mercado e sua lucratividade, intervir em políticas de Estado para manter apoios fiscais e retardar a transição energética. Nos Estados Unidos, o American Petroleum Institute, maior grupo comercial de petróleo e gás, que agrega gigantes petroleiras, gastou em 2021 mais de US$ 2 milhões com lobby no Congresso para evitar a perda de isenções fiscais, promovendo ainda campanha publicitária milionária em oposição a várias medidas previstas nos planos climáticos dos democratas. Levantamento preliminar aponta um volume aproximado de US$ 6 trilhões a 7 trilhões em isenções globais anuais para o setor.3
Entretanto, os tribunais começam a decidir contra a destruição global causada pelos fósseis. O governo da Califórnia, por meio do Public Attorney (Ministério Público) de São Francisco, começou a adotar na justiça as mesmas estratégias utilizadas contra as indústrias do tabaco na década de 1990. Algumas das maiores empresas petrolíferas, incluindo Shell, Exxon Mobil e Chevron, estão sendo acionadas por ocultar danos causados pelos combustíveis fósseis naquele estado por mais de meio século.
Segundo David Chjiu, procurador da cidade de São Francisco, “a mudança climática é uma ameaça existencial para a humanidade. Enquanto essas empresas petrolíferas enchem os bolsos e mentem sobre o impacto de seu produto, nossas comunidades sofrem os efeitos das mudanças climáticas”.4
O embuste institucionalizado
O embuste é parte constante da práxis política, demonstrava Jean-Jacques Courtine. Diante das constantes manifestações da ciência sobre os efeitos nocivos que estão se abatendo sobre a humanidade, podemos concluir que o insustentável mundo fóssil só se mantém à custa da mentira institucionalizada pelos países que usufruem de sua efêmera e suja riqueza.
O coordenador da COP 28 e presidente da ADNOC, Al-Jaber, durante o ano de 2023, dividiu-se em discursos antagônicos, sobre como a companhia empreenderia a maior exploração de petróleo até 2035 e como o mundo precisava reduzir de forma urgente os combustíveis fósseis nos próximos anos.
O papa Francisco foi direto ao alvo. Publicou nas redes sociais mensagem para os participantes da COP 28: “A ambição de produzir e possuir transformou-se em obsessão e resultou em uma ganância sem limites, que fez do ambiente o objeto de uma exploração desenfreada. O clima enlouquecido soa como um alerta para acabarmos com tal delírio de onipotência”.5
No fundo do poço pode haver uma mina de carvão
Não bastassem as dificuldades para enfrentar o setor petrolífero, a Agência Internacional de Energia (AIE) revelou que, em 2023, 8,53 bilhões de toneladas de carvão foram queimadas, superando os números de 2022. A alta do consumo entre 2022-2023 se deu na China (4,9%), na Índia (8%) e na Indonésia (11%). Os maiores poluidores, China e Índia, não pretendem conter tão já suas emissões. A China tem mais de quinhentas usinas de carvão previstas para manter sua gigantesca produção de bens para exportação.
A Índia segue em ritmo crescente com sua matriz fóssil para prover energia para sua gigantesca população. O projeto de superenergia da usina de Rampal é uma joint venture da qual participa a Bangladesh Power Development Board (BPDB), que comprará toda a produção de energia (PPA) por 25 anos, até a metade do século. O Grupo Bashundhara venceu a licitação para fornecer 8 milhões de toneladas de carvão para a usina, nos próximos três anos.6
O resultado de faz de conta da COP 28
A COP 28 encerrou suas atividades com mais do mesmo. Engenhosos filtros e hiatos políticos permeiam o documento genérico, que lista boas intenções e liberalidade sobre prazos e metas.
A área de mitigação das mudanças climáticas continua no plano do debate teórico, e os possíveis financiadores continuarão a ser procurados e estimulados. A adaptação climática será conduzida pelos países de forma voluntária e de acordo com as circunstâncias nacionais, com programa de trabalho de mais dois anos visando à mensuração do progresso das metas globais.
Novos relatórios serão elaborados, e o foco em perdas e danos terá esforços coordenados para dar suporte aos mais vulneráveis, quase tudo sem referências suficientes a perdas e danos, prejuízos econômicos ou direitos humanos. O financiamento climático também contará com a elaboração de relatórios e mais dois workshops em 2024. O documento final chove no molhado e reconhece a preocupação da ciência com 1,5 ºC de limite conforme o Acordo de Paris. A transição justa e o mercado de carbono contarão com submissões de novos textos e espaços de diálogo.
Ao final, o coração do problema, a emergência da “transição para longe dos combustíveis fósseis”, aponta apenas para a névoa de emissões líquidas zero (a pegadinha “líquida” sinaliza o abatimento com medidas compensatórias) para combustíveis fósseis para 2050, embrulhada em possível tecnologia, ainda inexistente em escala factível, que permita captura do carbono.7 Sem metas de curto prazo, a COP 28 continua a nos remeter ao cenário inercial de possivelmente algo próximo de +3 ºC até pouco mais que a segunda metade do século, o que prenuncia um desastre ecológico para a humanidade.
Apesar da previsão científica da chaleira humana, o encerramento da COP 28 gerou aplausos sobre o estabelecimento e a renovação de mais compromissos burocráticos.
Para escolher a nova sede, a intempestividade geopolítica global colocou a cereja no bolo. Depois de a Rússia ameaçar com veto a escolha de qualquer país da União Europeia, que impôs sanções ao país em função da invasão da Ucrânia, os países do Leste Europeu indicaram o Azerbaijão para sede da COP 29, em 2024.
Membro da Opep+, a ligação do Azerbaijão com o petróleo remonta aos relatos de Marco Polo. Além disso, tem um sofrível histórico de liberdade de expressão e direitos humanos. Exemplo disso é o caso do professor da London School of Economics, pesquisador anticorrupção e membro da Transparência da Indústria Extrativa (Itie) Gudab Ibadogihlu, que continua prisioneiro no Azerbaijão em função de suas críticas à falta de transparência nas contas nacionais do setor de petróleo.
Há esperança
Desde 2019, intensificou-se a construção do Tratado de Não Proliferação de Combustíveis Fósseis. A ideia é apoiada por pequenas ilhas do Pacífico ameaçadas de desaparecimento, pelo Vaticano, pela Organização Mundial da Saúde, por mais de setenta cidades (incluindo Paris e Londres), cem ganhadores do Prêmio Nobel, 3 mil cientistas e 1.800 organizações da sociedade civil. O Parlamento Europeu também aprovou uma resolução no fim de outubro pedindo o tratado, e a Nova Zelândia e o Timor-Leste o apoiaram publicamente. Recentemente, a Colômbia decidiu abandonar o petróleo e aderir à proposta do tratado.8
“A comunidade internacional como um todo deve assumir esse projeto. Não é o mínimo estudar as possibilidades de um acordo global que estabeleça que os recursos fósseis que o homem ainda não explorou devem permanecer no solo e subsolo da Terra? Sem esse primeiro passo, o consenso alcançado em Dubai poderia simplesmente ser destruído”, afirma Sabrina Robert, professora de DireitoInternacional.9
De fato, além dos fortes impactos que a humanidade já sofre, estamos diante de um caso inequívoco de injustiça transgeracional. O direito nos socorre. Jovens obtiveram sentença favorável do Tribunal Distrital de Montana (Estados Unidos), apontando o estado como réu por ter “violado o direito a um ambiente limpo e saudável”, previsto expressamente na Constituição estadual. Segundo os dezesseis jovens autores, o governo estadual, ao arrepio da lei e de fatos científicos, vem licenciando seguidamente extrações de petróleo e gás, contribuindo para as alterações climáticas e agregando poluição ao estado.10
O desafio que se impõe hoje é a capacidade da sociedade humana de se defender do aquecimento global, neutralizando os mecanismos de simulação daqueles que o comandam. *Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).
1 SEI, “Phasing down or phasing up? Top fossil fuel producers plan even more extraction despite climate promises: Production Gap Report 2023” [Reduzindo ou aumentando? Principais produtores de combustíveis fósseis planejam ainda mais extração, apesar das promessas climáticas: Relatório sobre a Lacuna de Produção 2023], Climate Analytics, E3G, IISD, Unep, 2023.
2 Granthan Institute, “What is climate change lobbying?” [O que é o lobby das mudanças climáticas?], 17 fev. 2023.
3 “In Your Facebook Feed: Oil Industry Pushback Against Biden Climate Plans” [Em seu feed do Facebook: resistência da indústria do petróleo aos planos climáticos de Biden], New Tork Times, 10 jan. 2021.
4 City Attorney of San Francisco, “City Attorney David Chiu issues statement on climate change lawsuit” [Procurador da cidade David Chiu emite declaração sobre processo de mudança climática], 19 set. 2023.
5 Salvatore Cernuzio, “COP28, Papa: necessária conversão ecológica global, comprometer-se todos agora”, Vatican News, 3 dez. 2023.
6 The Business Standard, “Bashundhara Group wins bid to supply 8m MT of coal to Rampal power plant” [Grupo Bashundhara vence licitação para fornecer 8 milhões de toneladas de carvão para usina de Rampal], 7 fev. 2023.
7 Observatório do Acordo de Paris, “Resumão da COP 28 – Parte II”, 15 dez. 2023.
8 Audrey Garric, “À la COP27, la bataille est lancée pour un traité de non-prolifération des énergies fossiles” [Na COP27, a batalha está em andamento por um tratado de não proliferação de combustíveis fósseis], Le Monde, 9 nov. 2022.
9 Sabrina Robert, “La transition hors des énergies fossiles adoptée à la COP28 ne pourra se faire qu’avec une réglementation internationale renforcée” [A transição para longe dos combustíveis fósseis adotada na COP28 só poderá ser alcançada com regulamentações internacionais reforçadas], Le Monde, 16 dez. 2023.
10 Gabriel Wedy, “Litigância climática na América: os casos Montana e Maui”, ConJur, 19 ago. 2023. América: os casos Montana e Maui”, ConJur, 19 ago. 2023
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