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Uma seca de três anos no Chifre da África, que terminou no ano passado, matou 80% das vacas no Quênia e destruiu meios de subsistência de muitas pessoas.
O calor provocado pela humanidade com o uso de combustíveis fósseis é cada vez mais preocupante. Na semana passada a ONU afirmou que a Ásia, em particular, está aquecendo rapidamente apresentando picos de calor superiores a 45ºC.
O calor insuportável levou Manila a suspender aulas presenciais por dois dias, enquanto as escolas de Bangladesh reabriram após dias de paralisação.
A intempestividade dos picos de calor e frio extremos levou a Mongólia a contabilizar perda de 5,2 milhões de animais, que não sobreviveram ao “dzud”, evento sazonal cuja frequência vem aumentando devido à instabilidade climática.
O “dzud é um fenômeno natural quando a seca é seguida por um inverno rigoroso, que atinge -40ºC, afetando plantações, gado e a população”, afirma a entidade Save the Children. Inverno extremo da Mongólia: 5,2 milhões de animais mortos enquanto crianças perdem a escola | Save the Children Internacional
Os pastores se queixam do que parece ser o “fim da vida nômade” para a região, onde a relva se recupera mais lentamente e coloca em risco a alimentação dos rebanhos. Os dzuds, que se repetiam a cada dez anos, estão ocorrendo de forma sequencial.
No Quênia, rebanhos de camelos, mais resistentes ao calor, estão substituindo a criação de gado. É comum afirmar que observar a chegada dos rebanhos de camelos no Quênia é “olhar para o futuro”.
As vacas, no Quênia e em grande parte da África, têm sido o animal mais importante por eras. São a base de economias, dietas e tradições. Mas agora as terras pastáveis diminuem e as fontes de água estão secando. Uma seca de três anos no Chifre da África, que terminou no ano passado, matou 80% das vacas nesta parte do Quênia e destruiu meios de subsistência de muitas pessoas.
O governo do Quênia está distribuindo camelos entre as famílias dos vilarejos quenianos, especialmente para o fornecimento de leite. Em tempos difíceis, os camelos produzem mais leite do que as vacas. Há um ditado popular que afirma: “A vaca é o primeiro animal a morrer em uma seca; o camelo é o último”.
Os sinais de desertificação da África são evidentes e a atitude do governo queniano demonstra ações práticas para socorrer a população diante das alterações climáticas. "Se não houvesse mudança climática, nem nos daríamos ao trabalho de comprar esses camelos", disse Jonathan Lati Lelelit, governador de Samburu, um condado a cerca de 240 quilômetros ao norte de Nairóbi. "Temos tantas outras coisas a ver com o pouco dinheiro que temos. Mas não temos opção."
O papel estatal nos processos de adaptação climática é essencial. Em artigo ao jornal francês Le Monde, a parlamentar Marie Toussaint, membro do Parlamento Europeu em 2019 e conhecida por sua atuação em defesa do meio ambiente, lembra que “o Estado de bem-estar social como o conhecemos foi construído em reação aos riscos gerados pelas sucessivas revoluções industriais: riscos à saúde, pobreza, desemprego, desigualdades econômicas, acidentes de trabalho, velhice etc. No entanto, o novo regime climático em que entramos trará o desafio de nos livrarmos dos combustíveis fósseis, das desigualdades climáticas e da perda acelerada de biodiversidade”.
Toussaint se apoia em projeções do cenário futuro, onde o custo da inação diante da emergência climática poderá ser avassalador: na França poderá causar prejuízos de 264 bilhões de euros por ano, se o cenário de aumento da temperatura se consolidar em +3,5°C até 2100. Este cenário pessimista do IPCC é adotado pelos franceses como o mais realista, diante a lentidão e inércia global no controle dos gases efeito estufa (GEE).
Alimentado pela queima de combustíveis fósseis e do El Niño, em junho passado o planeta rompeu o temido limiar de aquecimento de 1,5 grau Celsius acima dos níveis pré-industriais. Quase 19.000 estações meteorológicas registraram temperaturas recordes desde 1º de janeiro. Cada um dos últimos 10 meses foi o mais quente do gênero.
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O cenário de aquecimento recorde já era apontado pela Nasa, de acordo a sonda Atmospheric Infrared Sounder (AIRS), que possibilitou modelar o aquecimento entre 1880 e 2023.
Mas a ameaça climática prossegue. “O que acontece nos próximos meses, disse Gavin Schmidt, diretor do Instituto Goddard de Estudos Espaciais da Nasa, pode indicar se o clima da Terra sofreu uma mudança fundamental – um salto quântico no aquecimento que está confundindo os modelos climáticos e alimentando extremos climáticos cada vez mais perigosos”.
Mas mesmo que o mundo retorne a uma trajetória de aquecimento mais previsível, será apenas um alívio temporário das condições que a humanidade deve enfrentar em breve, disse Schmidt. "O aquecimento global continua em ritmo acelerado."
O Brasil precisa estar atento aos atuais alertas da Nasa, que analisou impactos sobre a temperatura do ar, precipitação, umidade relativa, radiação solar de ondas curtas e longas e velocidade do vento, em cenário de + 2°C acima dos níveis pré-industriais, o que pode ocorrer até 2040 se as emissões continuarem subindo nas taxas atuais.
Para a Amazônia o estudo indica temperaturas mais altas, menos chuva, secas mais severas, mais ventos e maior risco de incêndio – levando a região à área do planeta com a maior redução da umidade relativa, especialmente no chamado Arco do Desmatamento, que se estende da costa atlântica do Brasil até sua fronteira oeste com a Bolívia.
A região poderia romper o ponto de inflexão, com transição rápida da Floresta Amazônica para uma savana degradada — adicionando enormes quantidades de carbono armazenado à atmosfera, o que pioraria drasticamente as mudanças climáticas. Segundo Taejin Park, pesquisador do Centro de Pesquisa Ames da Nasa, “informações em menor escala podem ajudar a identificar variações nas projeções das mudanças climáticas que poderiam ser negligenciadas, levando a impactos significativos no planejamento e na tomada de decisões.”
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Uma análise do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostrou que algumas partes da Amazônia já atingiram temperaturas máximas de mais de 3 graus Celsius em relação aos níveis de 1960.
O pesquisador Lincoln Alves, do Inpe, ressalta que este resultado corrobora as conclusões dos relatórios mais recentes do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC). “Em nível regional, o aquecimento é por vezes muito maior que a média global. E não só no Brasil, mas em várias outras partes do mundo, o que potencialmente amplifica os efeitos da mudança do clima”, explica.
As medidas para enfrentar o quadro apontado pela Nasa são urgentes. Mas há pouca esperança no resultado das cúpulas climáticas, com coordenação continuamente protagonizada por países representantes da indústria do petróleo, como ocorrerá em novembro de 2024 no Azerbaijão, que sediará a COP29.
Na COP30, em Belém do Pará, teremos um Brasil com governo vergonhosamente dividido entre sustentabilidade e a lógica do business as usual dos combustíveis fósseis. O Ministério de Energia tem declarado intenção de financiar “desenvolvimento” com aumento de extração de combustíveis fósseis.
A vulnerabilidade do Brasil às mudanças climáticas é evidente, o que é agravado por contar com 3,5% da população em estado de extrema pobreza.
Na perspectiva da Nasa, as regiões do Cerrado, Amazônia, Pantanal e Caatinga serão particularmente castigadas com secas, na proximidade do aumento de 2ºC.
Essa realidade deve ser enfrentada a partir de agora. A primeira medida é o Brasil reconhecer, como sétimo maior exportador de petróleo do mundo, que sua posição com relação aos combustíveis fósseis poderá determinar futuras responsabilizações por perdas e danos -- e que essa posição contraditória afetará sua capacidade de implementar necessárias transformações internas, além de ser fator impeditivo para exercer liderança ambiental no cenário global. |
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