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por Carlos Bocuhy
Há cerca de cinco meses, os funcionários do Ibama e do ICMBio estão parcialmente paralisados em defesa de salários e planos de carreira dignos. Com isso, deixam de olhar com cuidado o desmatamento atual da Amazônia e do Cerrado, especialmente perdas ambientais registradas de dezembro até agora.
Um documento enviado ao governo por servidores ambientais de ambas as entidades, em dezembro de 2023, já mostrava um quadro preocupante. No texto, os signatários criticavam a inércia e a deslealdade do governo Lula, “mesmo após os ataques sofridos pelos servidores ambientais no governo anterior, que colocaram a proteção ambiental no centro do debate eleitoral em 2022, e a atuação decisiva do Ibama e ICMBio na queda de 49,7% no desmatamento da Amazônia. Diante disso, alertavam, não viam outra opção senão "reduzir as expectativas em relação a discursos e promessas, e, como trabalhadores, expor as contradições identificadas e lutar pelo reconhecimento que lhes é devido”.
As demandas por fortalecimento das instituições ambientais, aumento do quadro de funcionários, recomposição salarial e implementação de planos de carreira para os servidores são justas.
Basta comparar a involução do orçamento destinado à área ambiental. O orçamento da União aumentou de 2,168 trilhões de reais para 4,36 trilhões de reais nos últimos 10 anos, mas a destinação de recursos para a área ambiental caiu de 0,16% para 0,09%. A receita da União dobrou, enquanto a verba para a área ambiental foi reduzida pela metade isto em um cenário onde as florestas ganham crescente importância estratégica diante da necessidade de conter as mudanças climáticas e proteger a biodiversidade.
Os salários estão defasados em 70% e as condições de trabalho são precárias, enquanto os criminalidade ambiental é cada vez mais organizada e bem equipada.
Em uma série de entrevistas ao Proam, analistas ambientais descreveram esses problemas. Além disso, destacaram que o exercício de suas funções nas instituições é muitas vezes errático e confuso, agravado por uma sobrecarga de tarefas burocráticas que se acumulam às atividades de campo, diante de um aumento significativo na demanda.
Uma das reivindicações centrais dos agentes ambientais é a abertura de um novo concurso público para recompor a força de trabalho. O Ibama, que no passado contava com 6 mil funcionários, agora conta 2.954, menos que a metade. Além disso, cerca de 1 mil deles podem se aposentar até o final de 2025, segundo a ASCEMA, a Associação dos Servidores de Carreira de Especialista em Meio Ambiente.
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Em decorrência do encolhimento dos salários, os novos concursados apresentam índice de evasão da ordem de 20%, o que indica um crescente desinteresse pela carreira, motivado principalmente pela péssima remuneração.
Também não é estimulante o risco que o exercício da fiscalização representa. Recentemente, em Roraima, três fiscais foram mantidos reféns por três dias por garimpeiros. Espoliados de seu equipamento, conseguiram fugir passando também três dias perdidos na mata.
Com a paralisação parcial do Ibama, as multas ambientais diminuíram 69%, ou seja, o setor ficou desguarnecido neste ano em operações de fiscalização e para exercer penalidades econômicas que visam coibir o desmatamento.
Enquanto os servidores federais lutam por sua sobrevivência, a burocracia contábil do desmatamento ignora esses fatos. Segue apenas olhando pelo retrovisor, com as atenções voltadas para os dados de desmatamento de 2023 comparados a 2022, que foram divulgados em 28 de maio de 2024.
Os dados de 2023 destacaram a necessária retomada da presença do Estado na Amazônia. Especialistas do Ibama e do ICMBio, com apoio do governo, conseguiram reduzir os altos índices de desmatamento herdados da gestão anterior de Jair Bolsonaro. No entanto, em 2024, esses profissionais, agora relegados ao abandono, enfrentam crescentes dificuldades decorrentes da desestruturação funcional. As consequências desse abandono apontam para um desastre ambiental sem precedentes.
De janeiro a abril de 2024, segundo o Inpe, o Brasil registrou mais de 17 mil focos de incêndio, um aumento de 81% em relação ao mesmo período de 2023. Não há precedentes dessa quantidade de incêndios para esse período desde que os dados começaram a ser compilados, há 26 anos.
As causas do desastre estão ligadas ao El Niño, à elevação da temperatura global e à baixa capacidade operacional das instituições responsáveis. Os incêndios de janeiro a abril consumiram cerca de 12 mil km² da Floresta Amazônica, área equivalente a oito cidades de São Paulo.
O combate aos incêndios exige experiência. "Os esforços de prevenção, como a conscientização sobre ignições, a criação de aceiros em áreas estratégicas e a realização de queimadas prescritas dependem do emprego de pessoas com condições estáveis", explicou Manoela Machado, pesquisadora de incêndios do Woodwell Climate Research Center, em entrevista à agência Reuters.
Há ainda mais agravantes. Para 2024, o governo federal cortou 24% do orçamento do Ibama destinado ao combate a incêndios. Com uma redução de 12 milhões de reais, restou ao órgão um orçamento de 50 milhões de reais para o ano, menos da metade dos 120 milhões de reais originalmente solicitados pelo Ibama.
Neste cenário adverso, é preciso contemplar, com políticas públicas eficazes, a contenção da devastação, levando em conta a proximidade do ponto de inflexão da Amazônia, especialmente na região do arco do desmatamento, onde já se sinaliza gravíssimo desequilíbrio ecossistêmico.
“O lado leste da Amazônia está 28% desmatado. Durante o pico da estação seca, essa região perdeu 28% de chuvas e a temperatura média aumentou 2,3°C”, destacou Luciana Gatti, pesquisadora de Mudanças Climáticas do Inpe.
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A deterioração do microclima está impulsionando a floresta rumo ao declínio e à savanização. O desmatamento atual é, proporcionalmente, mais grave do que o observado nos anos anteriores.
Além da perda do capital natural representado pela massa florestal, a contabilidade da degradação da floresta deve, necessariamente, considerar que os remanescentes florestais têm valor acrescido devido à crescente raridade da cobertura vegetal e aos serviços ecossistêmicos proporcionados.
Comparar diretamente as taxas de desmatamento atuais com as de cinco anos atrás, por exemplo, é uma simplificação inadequada. A situação climática piorou, as condições ecossistêmicas estão mais deterioradas, o microclima sofreu alterações significativas e tanto a biodiversidade quanto a massa florestal estão reduzidas, o que torna os remanescentes florestais ainda mais vitais.
A atual governança ambiental brasileira apresenta falhas metodológicas na avaliação das perdas ecossistêmicas. Também não considera devidamente os novos desmatamentos em áreas em regeneração.
Existem falhas e subestimação das crescentes perdas na sustentabilidade dos ecossistemas. Parece também haver um esforço para desviar a atenção da Amazônia, comparando sistematicamente sua constante sangria à devastadora realidade do Cerrado e da Caatinga, ecossistemas importantíssimos que vêm sendo golpeados incessantemente pelo agronegócio predador.
A Amazônia é crucial para o equilíbrio climático continental, e sua condição crítica é clara. Proteger essa floresta e seus povos é fundamental. Ao cumprir essas responsabilidades, o Brasil não só ganha legitimidade como também se qualifica para atrair recursos de países com maior responsabilidade pelo aquecimento global. O que está em jogo, afinal, é a própria imagem do Brasil no exterior.
A floresta não pode mais ser submetida a uso político, nem à continuidade de facilitações indevidas ao agronegócio, desmatamento ou ao agravamento das condições operacionais e ao abandono dos quadros funcionais das instituições responsáveis.
O Ministério de Gestão e Inovação, responsável pela atualização salarial e pelos planos de carreira, tem demonstrado uma inércia inaceitável. Essa falta de ação é um dos fatores que contribui para o caos no processo de fiscalização, a ineficácia causada pela escassez de pessoal qualificado e o impasse contínuo com os agentes públicos que lutam por salários dignos. Essa insensibilidade e incompetência estão gerando consequências severas para o patrimônio ambiental brasileiro.
É inadmissível essa procrastinação em relação aos setores de fiscalização, que aparenta intencionalidade no enfraquecimento do aparelho estatal, o que favorece interesses econômicos de espoliação dos recursos naturais da região amazônica.
Abandonar à própria sorte os fiscais do desmatamento é desproteger a natureza. Fazer contas rasas e defasadas sobre degradação ambiental é apenas greenwashing, o que é muito ruim para o Brasil, ineficaz para conter as mudanças climáticas, péssimo para a sobrevivência da Amazônia e mortal para sua biodiversidade.
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